Bioquímico israelense ganhador do Nobel fala sobre como “o fazer” da ciência mudou

Um dos ganhadores do Nobel de Química de 2004 por descobertas sobre processo de ‘reciclagem’ de proteínas nas células, o bioquímico israelense Aaron Ciechanover fala sobre como as pesquisas mudaram nos últimos anos e defende o acesso aberto à produção científica.

Primeira pessoa nascida em Israel a ganhar um Nobel numa área de ciência, Ciechanover por pouco não seguiu outra carreira. Formado em medicina, em 1973 ele foi cumprir os três anos de serviço que todos jovens israelenses devem prestar às Forças Armadas do país. Após este período, já casado e com um filho, enfrentou a difícil decisão de continuar seu treinamento como cirurgião ou seguir sua paixão, a bioquímica. Com apoio da esposa Menucha, também médica, voltou para a academia, ingressando no laboratório de Avram Hershko no Instituto de Tecnologia de Israel (Technion).

E de lá praticamente não mais saiu, a não ser por breves períodos sabáticos com Hershko no laboratório do americano Irwin Rose no Centro de Câncer Fox Chase, na Filadélfia. E foi justamente nestes tempos juntos que eles desvendaram como nossas células “reciclam” as proteínas que produzem. Conhecido como “sistema de protólise mediada pela ubiquitina”, a descoberta rendeu o Nobel de Química de 2004 aos três. Em visita recente à Fiocruz, no Rio, como parte de um tour pelo Brasil promovido pela Fundação Nobel em parceria com o laboratório farmacêutico AstraZeneca, Ciechanover também falou sobre como usa sua história para inspirar jovens de todo mundo a seguirem carreiras na ciência e a importância dos investimentos na área para o futuro do país.

Quando o senhor soube que seu trabalho era um possível candidato ao Nobel?

Não se faz pesquisas pensando em ganhar prêmios. Trabalha-se muito mais para satisfazer a própria curiosidade. Mas é claro que chega uma hora que você toma consciência de que está no jogo. Você começa ver seus artigos citados, monografias sendo escritas, é convidado a participar de conferências… Mas nunca se sabe de verdade. O comitê do Nobel é conhecido por manter segredo de suas escolhas, então no final o telefonema é uma grande surpresa.

O senhor tinha ideia de quão grande a descoberta do sistema de protólise mediada por ubiquitina se tornaria?

Não. Muitos podem conhecer o sistema porque hoje já temos no mercado muitas drogas baseadas na ubiquitina e muitas outras a caminho. Não levou muito tempo para a descoberta ser traduzida em aplicações, menos de uns 20 anos, o que é relativamente rápido. Mas não se sabe isso previamente. Você começa com uma questão e vai procurando as lacunas nos conhecimentos de biologia, nos sistemas do organismo. As pessoas ingenuamente pensavam que o segredo de todas as doenças seria revelado uma vez que descobrimos o DNA, que uma vez que conhecemos as mutações não precisamos de mais nada. Mas percebemos rápido que o DNA não é toda a história. Ele pode ser o início da história, mas está longe de ser ela inteira ou mesmo o meio da história, pois além do DNA temos o RNA, o microRNA, todos tipos de níveis regulatórios e daí temos as proteínas. E as proteínas são muito mais difíceis de entender do que o DNA.

O que isso diz então da visão de muitas pessoas que os investimentos em ciência devem se focar em pesquisas que tenham aplicações?

Se todos se dedicassem às pesquisas aplicadas, práticas, não teríamos ciência básica, e isso seria muito ruim. Por exemplo, todas drogas são desenvolvidas contra determinados alvos. E quem dá o alvo é a ciência básica. Daí as empresas vão pesquisar as drogas. Você não pode matar o câncer sem entender os mecanismos do câncer, de onde ele vem, como ele se desenvolve. A descoberta dos mecanismos do câncer virão do lado “não prático” da ciência. A ciência é uma combinação entre curiosidade e praticidade. Se a curiosidade morrer, as aplicações também morrem. É preciso ter os dois lados alimentando um ao outro, um depende do outro.

Na ciência em geral, e na sua área em particular, a tecnologia se tornou muito importante na prática científica. Como o senhor vê esta relação entre ciência e tecnologia?

A tecnologia anda de mãos dadas com a ciência básica, tanto que a cada dois ou três Nobel um vai para desenvolvimentos na tecnologia. E não é por menos. Na ciência muitas vezes estamos limitados pela tecnologia, pela resolução das imagens, pela leitura da linguagem dos aminoácidos. Precisamos de ferramentas para isso tudo. A ciência faz as perguntas, mas não podemos respondê-las sem a tecnologia, e isto impulsiona o desenvolvimento tecnológico. Então a tecnologia chega, respondemos a pergunta e a ciência segue em frente para a próxima pergunta, o que impulsiona a tecnologia e assim em diante.

Não faz muito tempo tínhamos ciência verticalizada, em que os experimentos eram facilmente verificáveis, reproduzíveis, e levava muito tempo para chegarmos a um resultado. Hoje, no entanto, temos estudos que usando a tecnologia geram muitos resultados, enormes quantidades de dados, tantos que mal conseguimos entender o que está acontecendo. Como o senhor vê o impacto disso na ciência?

A ciência mudou, não há dúvidas. E mudou para o bem e para o mal. No meu tempo, digamos, a ciência era algo de baixo para cima. Você tinha que fazer uma pergunta, desenvolver um experimento, ir para a bancada do laboratório, usar as ferramentas químicas da biologia e aí ter os resultados. Hoje muito da ciência se tornou algo como uma pescaria. Mesmo que você não tenha uma questão pode dizer: tudo bem, pegamos 5 mil pacientes de melanoma, sequenciamos seu genoma e encontramos uma mutação. Não temos pistas do que a mutação faz, que partes da biologia ela afeta, o que seja. É força bruta, mas ainda assim importante. Precisamos que isso seja feito. Precisamos de muita informação para avançar na medicina personalizada, por exemplo. Precisamos de dados genéticos para entendermos isso, o que traz outra questão, no campo da bioética. Vamos sequenciar o genoma de toda a população de forma a entender o que está acontecendo? O uso desta informação pode ser perigoso. Empresas, seguradoras, militares, todos podem querer se basear em informações genéticas antes de te dar um emprego, uma apólice, um posto.

O que devemos fazer quanto a isso então?

Precisamos alertar a sociedade que a ciência é importante demais para a deixarmos apenas nas mãos dos cientistas. Antes a ciência era um trabalho isolado, no laboratório, você produzia o conhecimento e levava para uma empresa farmacêutica, de tecnologia, para desenvolver este conhecimento. Mas agora a ciência penetra profundamente no tecido da vida. Isso tudo traz implicações para a ciência básica, a bioética e a sociedade de modo geral. Os cientistas estão se tornando algo como especialistas vocacionais. Eles têm a tecnologia, mas não são eles que devem resolver os problemas da sociedade. Isso deve ser alvo de uma discussão profunda pela sociedade, com os tecnólogos, os cientistas, mas também com os clérigos, os psicólogos, os cientistas sociais, os legisladores, pois isto vai se penetrar na vida de todos. A ciência de dados e todas suas ramificações vão penetrar profundamente na vida de cada um de nós sentados aqui. Nenhum de nõs vai escapar. Vamos todos nos tornar parte deste negócio e desta discussão. Então é melhor fazer isto cedo do que tarde.

E a questão das publicações, a pressão sobre os cientistas não só para publicar seu trabalho, mas fazer isso em determinados periódicos de maior prestígio. Vemos hoje uma grande discussão sobre acesso aberto à produção científica, pois em alguns países, como o nosso, muitos cientistas não têm acesso total ou rápido ao que é produzido…

Na maior parte do mundo a ciência é financiada com dinheiro público. Assim, acredito que tudo que é feito com dinheiro público deve ser transparente e aberto ao público. É o mínimo de justiça. Mesmo que o público não entenda as pesquisas. Mas o fato de a maior parte das publicações estar em mãos privadas é um erro da nossa sociedade, que ganha corpo nos cientistas que querem publicar na “Nature”, na “Cell” ou em outras revistas como elas, o “Santo Graal” da ciência. Isto é errado porque eles são um negócio, querem ganhar dinheiro. Estas empresas têm um interesse na ciência, mas é um interesse vago. Seu maior interesse é seu negócio. Mas fomos nós criamos estes “deuses”, então nós podemos destruí-los. E eles devem ser destruídos. Então o que podemos fazer com relação a isso? Bem, podemos fazer pouco porque somos fracos e covardes. O que devíamos fazer na verdade é parar com isso, decidir hoje que não publicamos mais nestes periódicos, não assinamos mais estes periódicos, fazemos um boicote. Devíamos todos publicar num único periódico, o “Jornal da Ciência”, não importa o nome. Ele deve ter revisão pelos pares, pois isso é importante, pois vamos querer filtrar todo tipo de non sense. Mas depois disso tudo é possível. E aí se o estudo é importante as pessoas vão citá-lo e embarcar nele. E, se não for, será esquecido.

Fonte: Jornal O Globo